Na Revolução Farroupilha


Uma exceção, no entanto, deve ser feita: a sua participação na República de Piratini. Em pleno regime escravista, durante o Segundo Império, os escravos viveram em liberdade durante os anos de 1835 a 1845, num momento em que, no resto do Brasil, eles lutavam de armas nas mãos nos diversos movimentos de quilombagem que marcaram aquele período.
 
Referimo-nos à sua participação na Revolução Farroupilha e na proclamação da república de Piratini que ocupou o espaço geográfico dos atuais Estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. A participação dos escravos nessa república separatista proclamada por Bento Gonçalves tinha, ao contrário da sua participação em outros movimentos, a sua razão de ser.
Batalha de Farrapos. José Wasth Rodrigues, PMSP.

Sendo o Movimento Farroupilha deflagrado por estancieiros ou grupos e camadas a eles ligados social e economicamente e não sendo substantivo o trabalho escravo nesse tipo de atividade, os seus promotores não encontraram dificuldades em alforriar os seus escravos, que passaram a ser homens livres, tendo a sua maioria se engajado nas tropas dos farrapos, para combater pelos ideais republicanos.
Escravo que chegasse ao território farroupilha era considerado homem livre.
As três províncias insurgentes não receberam um contingente demográfico africano considerável em relação a outras, como Rio de Janeiro, minas Gerais, Pernambuco, Maranhão e Bahia, embora o seu coeficiente tenha sido bem maior do que supõe. O tipo de economia pastoril e extrativa prescindia do escravo ou o usava em quantidade bem inferior à dos engenhos de açúcar do Nordeste ou na mineração. Por outro lado, os trabalhos agrícolas, especialmente da erva-mate, também não eram de natureza a exigir uma concentração de braços escravos como a que a economia dos engenhos ou a da mineração impunham. Além disso, devemos salientar que, nas regiões fronteiriças, havia sempre o perigo de o escravo fugir para outros países. Daí não terem as camadas dirigentes da República interesse em manter a escravidão. O Rio Grande do Sul tinha, na época, 100 000 negros na sua população de 360 000 habitantes.
O escravo negro participou nesse episódio como aliado livre, criando várias zonas de perigo militar para o adversário em todas as áreas de combate. Ele não foi, também, um aliado de última hora. Desde a tomada de Porto Alegre pelos farrapos, quando se inicia a revolta, o escravo negro estará presente, resgatando a sua liberdade com essas lutas.
Todos os depoimentos da época afirmam que o negro foi um aliado dos mais importantes da República de Piratini.
Dante de Laytano:

No avanço sobre a capital, em 20 de junho e em 30 de junho [de 1935], e no cerco de Pelotas, em 1836, que marcam os passos iniciais e importantes das guerras de dez anos, os escravos negros tiveram um lugar de primeiro plano.
Os negros, escravos ou libertos, iam, daí por diante, tomar as posições de saliente coragem e entusiasmo de lutar.
Foram eles elementos de colaboração, entraram com os primeiros insurretos, estiveram ao par dos segredos e das senhas revolucionárias e tomaram parte na primeira avalanche que se jogou contra o Império.
O major João Manuel de Lima assumiu o comando da 1ª. Legião de escravos que entrou na cidade de Pelotas. Os escravos tinham razões de sobra para combater ao lado dos farrapos. O sentido antiescravista dos seus líderes justificava plenamente esse engajamento. Bento Gonçalves e Domingos de Almeida, ministros da Justiça e do Interior da jovem e efêmera República respectivamente, ao saberem que as tropas imperiais, ao prenderem negros soldados farroupilhas, mandavam açoitá-los como se fossem escravos, assinaram, em 11 de maio de 1839, documento no qual decidiam:
O Presidente da República, para reivindicar direitos inalienáveis da humanidade, não consentindo que o livre rio-grandense de qualquer cor que os acidentes da Natureza os tenham distinguido sofra impune e não-vingado o indigno, bárbaro, aviltante e afrontoso tratamento que lhe prepara o infame Governo Imperial, em represália ao que lhe é provocado. Decreta:
Artigo único: desde o momento em que houver sido açoitado um homem de cor a soldo da República pelas autoridades do Brasil, o General Comandante-Chefe do Exército, ou Comandante das diversas divisões do mesmo, tirará a sorte aos oficiais de qualquer grau que sejam das tropas Imperiais nossos prisioneiros, e fará passar pelas armas aquele que a mesma sorte designar.
Essa medida extrema de Bento Gonçalves bem demonstra o nível de valorização dos negros combatentes por parte dos farroupilhas. Isto porque, como é evidente, o negro demonstrava um ótimo desempenho como soldado. Porém, não foi apenas como lanceiro, soldado da infantaria ou nas cargas de cavalaria que ele se destacou pela importância do seu papel, mas na Marinha também. Lanchões armados, tripulados por ex-escravos, faziam parte da pequena frota farroupilha. Em várias oportunidades tiveram de provar a sua bravura, conforme o testemunho de outros participantes dessas refregas. Rafael e Procópio, negros, participaram juntamente com Garibaldi, que aderiu aos farroupilhas, dos combates que suas tropas travaram em Camaquã contra Frederico Moringue, das tropas imperiais. Muita da resistência que foi oferecida àquele chefe legalista deve-se à disposição dos negros que estavam ao seu lado.
O próprio Garibaldi, que tão ativamente participou ao lado das tropas de Bento Gonçalves criando, mesmo, a auréola de Herói de Dois Mundos, nas suas memórias refere-se elogiosamente a esses combatentes.
Esse intermezzo de liberdade durou pouco, porém. A República de Piratini foi derrotada pelo Duque de Caxias, que comandava as tropas do império escravista. Mesmo assim, os farroupilhas, no seu tratado de rendição, estabeleceram uma cláusula na qual se estipulava que deviam “ser livres, e como tais reconhecidos, os cativos que serviram na revolução”.
Logo depois, porém, o escravismo voltou a se instalar em toda a sua plenitude no território, que foi, durante dez anos, uma república sem escravos.
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História do Negro Brasileiro / Clóvis Moura - São Paulo: Editora Ática S.A., 1992
Imagem publicada em Brasil Revisitado: palavras e imagens / Carlos Guilherme Mota, Adriana Lopez. - São Paulo: Editora Rios, 1989.