Araquém Alcântara
Araquém Alcântara por Carlos Moraes
 
 
 

No princípio era o verbo
 

Aos 14 anos, Araquém Alcântara queria ser jornalista, quem sabe escritor. Atravessou a adolescência embrenhado nos grandes sertões, veredas, de Lima Barreto, Machado de Assis, J. D. Salinger, Joseph Konrad e do próprio Guimarães Rosa. Em 1970, ingressou na Faculdade de Comunicação de Santos. Logo trabalhava na sucursal do Estadão e Jornal da Tarde. Tudo certo. Uma noite foi ver uma sessão maldita que um francês, Maurice Legeard, organizava em Santos. O filme era A Ilha Nua, de Kaneto Shindo. Um filme quase sem história, ou palavras. Um casal vivendo com dois filhos numa ilha inóspita. E a faina diária de levantar, buscar água, preparar a terra, a comida, buscar água outra vez, a canoa no trapiche, os pássaros nas pedras, os remos contra as ondas. A força e a beleza da pura imagem. A foto como síntese do dizer. Araquém, transido no escuro, foi tendo uma epifania, um negócio. Saiu dali tonto, abalroado, chamado.

A primeira foto

No outro dia uma amiga, Marinilda, mostrava-lhe uma fotos bem comuns, de álbum de família, feitas por uma Yashica muito caseira. Ainda doente, febril do filme, Araquém mal olhou as fotos. Pediu foi a Yashica da Marinilda emprestada, comprou três filmes preto-e-branco e à noite foi para um cabaré do porto onde costumava ouvir bandas de rock e, com sorte, a canja de algum famoso de passagem.
Lá estava ele, a câmara na mão, dois filmes no bolso, nenhuma técnica na cabeça, nervoso como em toda primeira vez. Mesmo sem coragem para nada, obscuramente sabia que naquela Yashica, naqueles filmes, estava segurando uma vida. Saiu tarde, sem apertar o botão.
No ponto do ônibus, já amanhecia quando uma das moças do cabaré passou e desafiou:
- Quer fotografar, é? Quer fotografar? Pois então fotografa aqui. Levantou a saia e mostrou o sexo.
Foi sua primeira foto.
A primeira exposição

Não parou mais. As palavras já não serviam. Gaguejava nelas. O que interessava agora eram livros de fotografias, e imagens: Kurosawa, Bergman, Truffaut, Fellini, Wells, e os grandes fotógrafos, Cartier Bresson, Werner Bischoff, Ansel Adams, Ernest Haas.
Araquém escolhe o primeiro tema do seu primeiro ensaio: os urubus de Santos. Eles estavam sempre por ali, sempre próximos ao que sobrava, peixes mortos na praia, detritos em Cubatão.
Próximos, sempre, à miséria.
Título meio panfletário de sua primeira exposição, em janeiro de 1973, no Clube XV de Santos: Os urubus da sociedade. Panos pretos cobriam as fotos dos urubus, os detritos da cidade, seu povo encardido. O visitante, para ver, tinha de desvelar, levantar a saia. Influência inconsciente daquela primeira foto no cabaré do cais? Pode ser, só que o obsceno ali era social. A exposição, aliás, foi tachada de comunista. E crivada de perguntas. Por que fotografar urubus, miseráveis, bichos que não vendem?
 

O urubu na calçada

Mas Araquém prosseguiu. Já tinha uma espécie de lema. Escolher, sempre, com o coração.
Prosseguiu e não se arrependeu de começar apostando no urubu.
Uma tarde, ainda em 1973, voltava ele da cobertura de uma regata quando viu um urubu na calçada, na frente de uma peixaria. Da peixaria sai uma menina de uns três, quatro anos e se aproxima, encantada, do urubu. Araquém ajusta firme sua modesta Pentax Spotmatic. Pressentiu. Ia se certificar depois, a vida inteira, de que foto é pressentimento, a premonição de que alguma coisa de simples e grande vai acontecer. Aconteceu. A menina se inclinou para afagar o urubu. O urubu já estava abaixando docilmente a cabeça quando dois homens saíram nervosos da peixaria. Um agarrou a criança, outro enxotou o urubu. Em seis fotos Araquém registrou a cena toda. Em seis palavras contou a história. Num segundo descobriu que ser fotógrafo é registrar a história instantânea deste mundo. Que é preciso estar ali quando a vida, de repente, levanta a saia – e mostra.
Na época, a revista Fotoptica publicava a seqüência do urubu na calçada.
Luzes na Juréia
E veio a terceira convocação. Em 1979, da parte de um vereador ambientalista de Itanhaém, Ernesto Zwarg Jr., uma das primeiras e valentes vozes a se levantar contra a depredação da Juréia por madeireiros e caçadores. Ernesto chamou Araquém para uma matéria sobre a região.
Começaram as viagens ao coração da Mata Atlântica. A pé, por matas virgens, subindo e descendo morros, dormindo sob grandes árvores. Foi outra revelação, como  aquela noite em que bateu a cara contra as imagens de Kaneto Shindo. Só que ali a ilha não era nua. Deus fez todas as florestas, mas a Mata Atlântica ele editou: ali eram aquelas grandes massas de todos os verdes, pontilhadas de cores, córregos alegres, ikebanas que naturalmente se formavam, uma atrás da outra. A revelação, contra todo o horror, da harmonia possível. A descoberta da cor, no seu hábitat.
Uma vez, em plena Juréia, sentiu-se como que ungido para essa missão. Uma noite, foi contemplado com a visão da mãe-de-fogo, também chamada tucano-de-ouro, uma bola de luz com rabo de cometa que se desprende dos ermos e se sustenta por uns segundos no céu. Araquém teve tempo de chamar o caiçara Vandir e os dois juntos viram a mãe-de-fogo desaparecer atrás do pico do Pogoçá.

A onça no igarapé

Em 1980, vai Araquém a Manaus fazer uma matéria para uma empresa ligada à revenda de pneus.
No hotel, entreouve o papo de dois garçons sobre uma onça sem rumo que andava aparecendo ali pelo igarapé do Guedes. Pressentiu.
Guiado por um dos garçons, saiu de barco à procura da onça. Nem precisou navegar muito. Avistou-a logo, majestosa, brincando de morder troncos dentro d’água. Era uma onça com problemas. Fugida de um hotel para onde não queria voltar, fora, ao que parece, meio rejeitada entre as onças da alta floresta. Então vivia por ali, como todos os desadaptados, pelas beiradas.
Araquém revelou a foto, ampliou, vendeu para os gringos dos pneus e, com o dinheiro, comprou seu primeiro tripé, sua primeira Nikon.
Voltou profissional.

O velho Queco

Voltou mais equipado para uma fotografia de combate e denúncia, a social em preto-e-branco, em cores a ecológica. Nessa época, princípios da década de 80, o governo militar vinha engendrando duas usinas nucleares justo na região da Juréia. Araquém une-se aos protestos e produz uma foto lendária. É onde na história entra o pai, Manuel Alcântara, o velho Queco.
Velho Queco talvez esteja, na vida de Araquém, onde as coisas realmente começam. Porque era um ser especial. Aos dez anos saiu de casa, em Itajaí, Santa Catarina, “com dois sapatos furados e um ovo cozido”, para correr mundo. Foi grumete, cozinheiro de navio, caçador de tesouros na costa, andarilho, cujo único luxo era manter os sapatos mais ou menos em dia para poder entrar nos cinemas. Analfabeto das letras deste mundo, falava, em transes, priscas línguas da África.
Pois num dia de abril de 1981 dispôs-se o velho Queco a acompanhar o filho fotógrafo para uma foto contra as usinas nucleares. Saíram de Peruíbe, andaram 36 quilômetros a pé, só foram parar em plena Juréia, na praia de Grajaúna, onde as tais usinas seriam construídas. Ali o velho Queco, que usava tranças, soltou a cabeleira, segurou contra o peito uma foto, solenemente emoldurada, mostrando cadáveres insepultos das vítimas de Hiroshima. E o filho fez a foto.
A foto correu o Brasil, correu o mundo, como um grito, um exorcismo. O velho Queco, profético, com uma tragédia no peito. Jornalistas deram matéria contra as usinas, os caiçaras passaram a dizer que era coisa do diabo.
Hoje a praia da Grajaúna faz parte da reserva ecológica da Juréia.

Livros, o livro

Mesmo frilanciando aqui e ali – pela IstoÈ cobriu as históricas greves do ABC – Araquém não abandona projetos e ensaios na direção de uma maior consciência ecológica e social.
O que recolhe na estrada começa a se transformar em livros. O primeiro foi com Burle Marx, sobre as árvores de Minas. Vieram esplendorosas obras sobre a Mata Atlântica e sobre o complexo lagunar entre os estados de São Paulo e Paraná chamado Mar de Dentro. Ambos pura celebração da beleza da nossa fauna e flora. Um pequeno livro sobre as favelas de Santos, num muito bem editado preto-e-branco, mostra que as trilhas do urubu não tinham sido abandonadas. Em grande parte continuam, isso sim, inéditas. No livro sobre Santos, Araquém, nascido em Florianópolis, festejou a cidade onde vive desde os sete anos.
Nessas andanças todas, nessas longas comunhões com a natureza, Araquém já estava gestando sua grande obra sobre o Brasil a partir de uma visita aos seus 36 parques nacionais.
Este seria o grande projeto, o apaixonado ensaio. O livro.

A grande batalha

O livro começou. Quando começou? Na noite em que, transido, viu a ilha nua de kaneto Shindo?
Certamente, e também quando viu o urubu na calçada, a onça do igarapé, a mãe-de-fogo na serra.
Na prática, com mais certeza, pode-se dizer que começou cerca de dez anos atrás. Porque era um vasto, minucioso, ambicioso projeto. Registrar a magnífica herança ambiental brasileira, do Cabo Orange ao Banhado do Taim, em seus momentos de esplendor e misérias, de preservação e extermínio. Todo o Brasil. A grandeza da Floresta Amazônica, a delicadeza da Mata Atlântica, o alucinante das chapadas, os desatinos do Pantanal, os vastos cerrados e os primeiros desertos.
Custasse o que custasse, demorasse o que demorasse.
Custou, demorou. O Brasil, às vezes, é longe, caro, confuso. Era preciso, o tempo inteiro, inventar matérias para as revistas, batalhar passagens, hospedagem, comida, transporte, pegar carona em barco, avião, negociar, horas, um helicóptero. Pensar, o tempo inteiro, na logística da coisa. Dispor-se a ficar, como o velho Queco, com dois sapatos furados e um ovo cozido. Contar, felizmente, com o grande refrigério que foi o apoio de secretarias estaduais de turismo, funcionários do Ibama e todos aqueles inesperados e generosos amigos que se vão fazendo pelo caminho. Foram, sim, dez anos de idas e vindas, paixão e teimosia.

Todo este Brasil

Paixão, dificuldade, mas também muito encantamento. Hoje, quando Araquém fala de sua longa viagem de dez anos, do seu longo Brasil, bichos, gentes, paisagens vão despontando, despertando para um imenso mural de arrepiar. As araras azuis do Pantanal, as delicadas flores dos campos de altitude, o rugido das onças e a abundância dos peixes no Araguaia, os lobos-guarás da serra da Canastra, onde, num jardim japonês, nasce o São Francisco, as lagoas perdidas e os pescadores nômades dos lençóis Maranhenses, a bíblica concentração de maçaricos, coscorobas e capororocas na Lagoa do Peixe, Rio Grande do Sul, os mal-humorados caititus e sobranceiros gaviões do Parque das Emas, as Araras Canindé do Parque Nacional Grandes Sertões, Veredas, onde brotam o Urucuia e o Carinhanha de Guimarães Rosa, as cidades de calcário e arenito da Serra da Capivara, no Piauí, legendadas de inscrições rupestres, os portentosos cânions dos Aparados da Serra, as perturbadoras figuras de pedra no Pico do Roraima.
E uma cidade: Xique-Xique do Igatu, na Chapada Diamantina. Ali um povo próprio habita o que restou do auge do diamante. Dona Poném, que com seus muitos gatos e sábia ironia mora sozinha num casarão perdido da Serra do Sincorá. Dona Alzira, que em centenários casarões garimpa, e encontra, jóias dos tempos em que aquilo tudo era um fausto só. De terno, chapéu e bengala adaptada da porta de ferro do cemitério, por ruas de pedra, seu Carmito, subdelegado honorário, exibe sua autoridade. E à tarde, na praça, é costume levar os pássaros de gaiola para passear. Em Xique-Xique do Igatu os pássaros saem, brincam por ali e depois voltam direitinho para a gaiola. E em noite de muita mariposa, a cidade é inteira invadida por sapos de toda a ordem. Enquanto lá, no único bar, seu Guina sabe que Araquém vai chegar exausto das andanças pela serra e congela a cerveja e separa a carne-de-sol.

A grande viagem

De todas, a viagem pela Amazônia, agora na virada de 1996 para 1997, foi a mais fantástica, a mais trabalhosa. De avião, de barco e a pé, quatro meses de andanças, 60 mil quilômetros percorridos, mais de 30 mil fotos. É o que custa a decisão de fotografar os sete parques nacionais daquele desmesurado mundo à parte. No Acre, para fotografar uma única e bela cachoeira do Parque Nacional da Serra do Divisor, foram necessários três dias de barco e dois a pé pela selva. A cachoeira se chamava Formosa, e merecia.
De avião, de barco, a pé, era um desafio a cada passo.
Em Roraima, o monomotor em que viajavam simplesmente desapareceu numa tempestade. Ficaram uma infinita meia hora entre nuvens pesadas, raios, e o desespero era completo até que vislumbraram a primeira nesga de céu azul. Na descida do rio Cotingo, também em Roraima, a canoa se desgovernou na correnteza, próximo a uma cachoeira. Na última hora, como nos filmes, foi possível agarrar-se a uma pedra, controlar o barco e salvar a tripulação – e o equipamento.
Uma viagem à Amazônia não estaria completa sem uma subida ao Pico da Neblina, teto do Brasil, uma aventura de 17 dias. Partiram de São Gabriel da Cachoeira, passaram cinco dias nas aldeias dos Ianomâmis, navegaram depois pelo rio lá-mirim, entraram pelo lá-grande, tomaram o Cauburis até o igarapé Tucano. Dali caminharam cinco dias pela mata até, enfim, a base do Pico da Neblina, já a dois mil metros de altura. Começa a escalada. São mil metros de escarpas, pedras, lama e vegetação rala. Como guias, dois garimpeiros valentes. Foi uma subida na unha e na raça sem nem uma corda para ajudar. Em cinco horas chegam ao topo, um platô de uns vinte metros com a bandeira brasileira fincada numa pedra. Chove, faz frio, a névoa encobre tudo. A foto, a épica foto, quase nem é possível. Emocionado, exausto, defendendo-se do frio ao abrigo de uma pedra, Araquém conseguiu escrever em seu caderno de anotações: “Eu me sinto, mais que nunca, um viajante, um colecionador de mundos. Aqui, mais uma vez, consagro minha vida a registrar e repartir belezas”.

Brasil cores e sentimentos
São Paulo: Escrituras Editora, 2001.
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