Coca-cola versus Guaraná
 

História da Coca-Cola no Brasil



A Coca-Cola começou a entrar no Brasil juntamente com os ecos da Segunda Grande Guerra, no dia 31 de outubro de 1939, quando Getúlio Vargas baixou um decreto modificando o uso de aditivos químicos em refrigerantes no País. Assunto ainda controverso em 1984, essa mudança na legislação foi essencial para a penetração no Brasil dell’acqua nera dell’imperialismo (a água negra do imperialismo), dizia a esquerda italiana.
Ao contrário do Guaraná, por exemplo, a coca contém alguns ingredientes que não são alimentos, podendo ser prejudiciais à saúde. O principal deles é o ácido fosfórico, capaz, segundo os médicos, de combinar-se com o cálcio existente no organismo das pessoas. Ao sair, na forma de fosfato de cálcio, leva esse precioso componente vital. A perda de cálcio – “descalcificação” – é ameaça potencial a ossos e a dentes em formação.
Por isso, muitos cientistas acreditavam que as mulheres grávidas não deviam beber coca. Em 1968, uma pesquisa feita na USP (Universidade de São Paulo), mas nunca divulgada, mostrou que ratos alimentados com o refrigerante apresentavam malformação já na segunda geração de filhotes. Seus ossos eram fáceis de quebrar e seus dentes partiam.
 
Anos 40 (1944)
40 anos depois: máquinas automáticas

Getúlio Vargas facilitou a entrada da empresa no Brasil. Ele citava o ácido fosfórico explicitamente em seu decreto, permitindo que fosse usado em refrigerante na dosagem de até 1,5 grama por litro. Isso era mais que suficiente: cada garrafa pequena de coca-cola continha de 0,8 a 1,1 grama do aditivo. Além disso, o volume mínimo das garrafas de refrigerante – que era de 333 centímetros cúbicos (cc) – foi reduzido de modo a incluir as garrafas pequenas de coca – que tinham nos Estados Unidos, 178 cc, exatamente o que prescrevia a nova lei.
Em 1942, chegaram aos bares, no Rio de Janeiro, as primeiras garrafas do novo “suco”. A Coca-Cola tinha investido apenas 10 mil dólares para ocupar o mercado brasileiro. Em 1944, ainda em plena guerra, um cartaz de propaganda do novo produto estabelecia uma relação entre a aliança antinazista e as facilidades recebidas em sua campanha comercial no Brasil: uma linha fina no rodapé do cartaz, cortada por um minúsculo mapa das Américas,  dizia: “Unidos hoje, unidos sempre”.
Getúlio passou à história como autor de uma política de cunho nacionalista sob vários aspectos. Nem por isso evitou-se, durante seu governo, que se consolidasse aqui o império empresarial da Coca-Cola, uma das mais poderosas e peculiares firmas multinacionais já edificadas no País – detrimento do guaraná, refrigerante derivado de uma fruta nacional, e muito superior à coca como alimento, além de não possuir o temível ácido fosfórico. Foram as suas qualidades que permitiram ao guaraná resistir, até certo ponto, ao assédio comercial da coca.

Conhecido pelos índios da Amazônia muito antes de Cabral ter aportado nessas plagas, o guaraná é uma planta que vive 40 anos. Esse fato poderia tê-lo tornado, segundo o jornalista Bernardo Kucinski num poderoso fator de fixação do homem à Amazônia, caso o seu cultivo tivesse sido incentivado e não prejudicado comercialmente, devido às facilidades concedidas à coca. A “pureza” do guaraná resulta da pasteurização direta da fruta natural; enquanto, no caso da coca, temos um xarope industrializado ao qual é necessário acrescentar “sabores” artificiais. 
A qualidade do guaraná se deve ao fato de que seus primeiros fabricantes foram a Brahma e a Antarctica, que aproveitaram, então, o equipamento de pasteurização já utilizado na fabricação de cerveja – o produto original dessas firmas. Uma outra vantagem do guaraná sobre a coca, em função do modo de fabricação, é que, embora o guaraná também tire suas propriedades estimulantes da cafeína – como a coca -, nele a quantidade dessa substância é muito menor, além de entrar no suco como parte dos compostos orgânicos existentes na semente da fruta. Na coca, ao contrário, a cafeína e o ácido fosfórico entram como parte da fórmula do famoso xarope secreto que foi a base não só do refrigerante em si, mas também de um lance empresarial muito bem-sucedido.

O império mundial da Coca-Cola, de fato, sempre esteve umbilicalmente ligado a sua matriz, a cidade de Atlanta, capital do Estado da Geórgia, nos Estados Unidos. As filiais estrangeiras da empresa tinham apenas o trabalho de dar um tratamento industrial final ao produto, mas a base era o xarope, cuja fórmula, segundo os especialistas, era conhecida por não mais que uma dezena de pessoas. “Nosso negócio é a franquia”, admitiu um dos mais célebres presidentes da Coca-Cola, Paul Austin. Isto é, a empresa vendia, dos EUA, os direitos de usar o xarope e o nome mágico. Cobrava essa concessão dos engarrafadores e concessionários através dos resultados de venda por atacado, tirando daí uma parcela de 15,7%. Esse pagamento incluía ainda um serviço essencial de empresa estadunidense – o apoio publicitário e promocional, um setor em que ela se tornou mestra, gastando sistematicamente com ele 5% de tudo o que auferia nas vendas. Em comparação com esse esquema, o guaraná exigia a montagem de um caro sistema de pasteurização – custando 200 mil dólares, em1975 -, um investimento que apenas grandes comppanhias podiam cobrir. Por isso, rapidamente, os produtores de refrigerantes no Brasil desistiram de resistir à coca, confiando mais no que se dizia nos EUA: “Obter uma concessão da Coca-Cola é como herdar uma mina de diamantes”.

No século 19 curava dor de cabeça e era verde

O refrigerante mais consumido do mundo apareceu, no século 19, como um remédio para dor de cabeça e distúrbios do sistema nervoso.
Em 1886, um farmacêutico de Atlanta, John Pemberton, dono da Jacob’s Pharmacy, desenvolveu a fórmula de um líquido verde, anunciando-o imediatamente como uma nova, “deliciosa e refrescante” beberagem. Em 1895, a Coca-Cola já havia conquistado os Estados Unidos e, na virada do século, chegara aos seus aliados mais próximos: Canadá, Inglaterra, Cuba e Porto Rico. Em 1919, no entanto, começaria realmente a escalada mundial que a estabeleceu em 139 países diferentes em todo o planeta, inclusive União Soviética e China.

A Coca-Cola sempre manteve importantes contatos externos, os mais importantes deles através dos presidentes estadunidenses. Tornaram-se famosos os brindes do presidente Dwight Eisenhower nos banquetes oficiais – não com champanhe, mas com a borbulhante coca. O entusiasmo explicava-se, em parte, porque Eisenhower era acionista da empresa. Esse trunfo parece ter sido usado também pela sua concorrente direta, a Pepsi-Cola, que tinha como acionista o presidente Richard Nixon, o qual, em 1980, teria ajudado a Pepsi a entrar no mercado soviético.
O próprio Austin era amigo pessoal do presidente Jimmy Carter, e também seu conselheiro. Como tal, ele participou de missões importantes do governo estadunidense como enviado especial ao exterior. Quando Carter ainda estava campanha, seu embaixador na ONU, Andrew Young, fez extensos elogios à Coca-Cola como uma multinacional exemplar, capaz de contribuir para o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo sem interferir “com a cultura e a política” de cada um deles.

Essa propaganda ficou algo abalada depois do episódio da nacionalização da Coca-Cola, na Índia, em 1977, sob a alegação de que, não conhecendo o segredo da fórmula da coca, não era possível ao governo controlar os lucros da multinacional. Estimavam os indianos que a venda do xarope proporcionava lucros de até 400% à multinacional estadunidense. Segundo o governo de Nova Delhi, em 25 anos de atividade na Índia, a Coca-Cola investira apenas 100 mil dólares; em contrapartida carreara para o exterior recursos da ordem de mais de 12 milhões de dólares.
No Brasil apenas o presidente Jânio Quadros criou problema com a Coca-Cola. Foi obra dele – ainda como governador de São Paulo – o único ato de interferência física, por parte do Estado, para impedir a fabricação da coca-cola, em 1955. Jânio mandou fechar uma engarrafadora sob a alegação de que a empresa burlava uma lei estadual que bania o uso do “ácido fosfórico e seus componentes” em bebidas. O ato do governador, no entanto, não deu em nada. A Coca-Cola conseguiu provar nos tribunais que a lei havia sido extinta em 1952.
 
 
 

No início do século 20, após conquistar o mercado estadunidense, a Coca-Cola chegou ao Canadá, Inglaterra, Cuba e Porto Rico. Nos anos 80, ocupava mais da metade do mercado de refrigerantes no Brasil e era encontrada na China

A Pepsi apostou no protesto através do consumo

A legislação atualmente em vigor sobre o ácido fosfórico é mais rigorosa que a de Getúlio, reduzindo o limite de 1,5 para 0,6 grama. Essa legislação foi criada pelo presidente Juscelino Kubitschek, em 24 de Janeiro de 1961.
O alvo principal da Coca-Cola, através da publicidade, sempre foram os jovens – um fato importante para se compreender sua trajetória no Brasil. Em 1975, 65% dos brasileiros tinham menos de 25 anos de idade. Dessa forma, explica o publicitário José Roberto Orsi, “o mercado de refrigerantes  no Brasil apresentava uma das maiores taxas de crescimento do mundo”. Orsi era o responsável pela publicidade da Pepsi-Cola no Brasil, em 1975, com orçamento anual de um milhão de dólares. “O consumo de refrigerantes baseia-se inteiramente na publicidade”, explicava ele, “e não nas necessidades orgânicas do indivíduo”.

A forte expansão do mercado brasileiro determinou fortemente a guerra entre os fabricantes de refrigerantes e foi outro fator que permitiu ao guaraná resistir melhor, até certo ponto, às investidas de sua poderosa adversária. Pelo menos até a Pepsi entrar também na jogada, em 1952. Vinda da Argentina, onde se estabelecera primeiro, a Pepsi aproveitou-se inclusive da rivalidade já existente entre a coca e guaraná.
“Para poder crescer, temos que ser fortes frente à Coca-Cola, mas esta tem que lutar contra o guaraná e as sodas também”, disse, em 1975, um dos seus dirigentes brasileiros, Júlio Pimentel. E a Pepsi decidiu atacar justamente na faixa jovem. “Neste país”, explicou José Roberto Orsi, “a juventude não tem canais de protesto, de forma que nós lhe oferecemos um mecanismo de protesto, o protesto através do consumo”.

As águas minerais tão comuns na mesa do brasileiro antes de 1950, já haviam sucumbido à luta, agora mais renhida. Começaram a aparecer os bares monopolizadores: “Nós não trabalhamos com a Brahma”, “nós não trabalhamos com a Pepsi” – eram expressões comuns nos estabelecimentos de alguma forma atrelados às grandes empresas. Em desafio aberto à Lei de Proteção à Economia Popular, os fabricantes passaram a condicionar a distribuição de seus produtos ao uso de geladeiras e outras benfeitorias. A Antarctica e a Brahma responderam às novas necessidades: passaram a oferecer chopeiras, cadeiras. Mesas e até financiamento para a compra de suas bebidas. Grandes empresas, enfim, começaram a engolir dezenas de pequenas fábricas, inclusive saudáveis fabricantes de suco realmente natural, sem borbulhas e sem aditivos.
Os atritos da década de 40 tiveram o saldo positivo de forçar a Coca-Cola a divulgar as suas vendas. Ficou-se sabendo que de 1945 a 1984 ela vendera 240 milhões de garrafas. Em 1980, ela havia diversificado bastante as suas atividades, entrando, por exemplo, no setor de peixes congelados, com grande sucesso. Em 1981, inclusive, a empresa viveu situação inédita até então – a de ver seus produtos locais perdendo vendas. Mas sem nenhum trauma: de acordo com as tendências do governo brasileiro, ela estava de fato dirigindo mais as suas atenções para a exportação, que recebia maiores incentivos e portanto era mais lucrativa. Entre 1980 e 1981, suas exportações dobraram. Mesmo assim, sua situação no mercado interno continuava invejável: com 1,5 bilhão de litros de refrigerantes vendidos, ocupava 45,1% do mercado. A Pepsi então tinha 6,5%, a Antarctica tinha 29% e a Brahma, 12,9%. No resto havia tudo, inclusive os guaranás “populares”, de qualidade inferior, como a tubaína. A Coca-Cola já produzia então o seu próprio guaraná, assim como as suas próprias laranjada e limonada gasosa.

Nota: os produtos por fabricante são os seguintes:
 
 

Empresas Coca-Cola Pepsi-Cola Antártica Brahma
Sabor Cola Coca-Cola Pepsi-Cola -o- Kita cola*
Sabor Guaraná Guaraná Taí -o- Guaraná Guaraná
Sabor Laranja Fanta Laranja Crush Pop Sukita
Sabor Limão Fanta Limão Gini Soda Limonada Brahma Limão
* Kita cola, que após a Brahma ser autorizada pela Pepsi, em 1984, a engarrafar a Pepsi-Cola, começou a ser retirada do mercado.
Fonte: revista Exame, 21/3/84

 
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É isso aí, Retrato do Brasil. - São Paulo: Editora Três/Política Editora, sem/data
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