CURT NIMUENDAJU

Local e fotógrafo não identificados. Museu Nacional, c. 1937
Nimuendaju é talvez o nome mais conhecido da etnografia indígena brasileira, coisa que não se pode dizer de sua obra, vasta mas em grande parte inédita em português. A tradição lendária que cerca sua vida tem, igualmente, recebido mais atenção que as lendas e tradições dos índios a cujo estudo ele se dedicou durante quarenta anos, desde a sua chegada ao Brasil em 1905 até sua morte em 1945, numa aldeia Tikuna do Alto Solimões. A edição desta pequena amostra de mitos indígenas, coletados por Curt Nimuendaju, é a contribuição da Revista do Patrimônio ao recente movimento de "redescoberta " da obra do grande etnógrafo teuto-brasileiro, obra essa de importância decisiva na consolidação dos estudos indígenas em nosso país.
Nimuendaju nasceu Curt Unkel em Jena, 1883. Chegando ao Brasil em 1905, já no ano seguinte iniciava sua convivência com os Guarani (Apapocúva) do Estado de São Paulo.  Esta era a época em que o noroeste paulista e o sul do Mato Grosso conheciam um movimento de colonização por imigrantes, apoiado pela construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil, de triste memória para os povos indígenas da região (Guarani, Kaingang, Xokleng, Ofaié). Foi neste contexto que surgiu o famoso debate entre Von Ihering, seguidor de tradição de Varnhagen no propor o extermínio dos povos indígenas para liberar suas terras aos imigrantes, e a corrente positivista que, vitoriosa, levou à criação do Serviço de Proteção aos Índios, agencia oficial com a qual Nimuendaju veio a colaborar desde cedo, incorporando-se a ela em 1922. Nimuendaju passou cinco anos entre os Apapocúva-Guarani, acompanhando suas migrações em busca da "Terra sem Mal"; foi adotado e renomeado por eles, vindo a publicar em 1914 um relato dramático e etnograficamente magistral sobre a religião Apapocúva¹. A partir desta primeira experiência com os Guarani, Nimuendaju ampliou seu interesse e atuação até abarcar toda a realidade indígena brasileira, tornando-se o principal especialista na matéria por toda a primeira metade do século XX. Entre 1906 e 1945, realizou 38 expedições etnográficas e arqueológicas, cobrindo os quatro cantos do país, desbravando conjuntos culturais até então ignorados, desenvolvendo talentos de etnógrafo, lingüista, arqueólogo, historiador e cartógrafo de um modo dificilmente emulável em qualquer época. Nas duas últimas décadas de sua vida, Nimuendaju lançou-se ao estudo dos povos de língua Jê do Brasil Central, empresa que resultou em três monografias clássicas, sobre os Xerente, os Apinayé e os Timbira Orientais (Krahó e Canela), trabalhos que, além de terem estabelecido um padrão técnico até então inexistente na antropologia brasileira, fizeram seu autor mundialmente conhecido. Robert Lowie e Claude Lévi-Strauss, a partir destas monografias, lançaram hipóteses que conduziram a um movimento de reestudo dos Jê, da década de 1960 em diante, responsável por uma mudança de rumo decisiva na etnografia indígena do continente.
Autodidata, sem qualquer espécie de formação acadêmica, Nimuendaju veio a adquirir um conhecimento enciclopédico sobre os índios brasileiros não apenas por sua associação com autoridades no assunto, como Nordenskiöld, Métraux e Rivet, mas principalmente por experiência de primeira mão, no campo, nas bibliotecas e arquivos. Em tudo isso foi guiado por um compromisso radical - ético, político, epistemológico e vital - com as formas de vida e a sorte dos povos indígenas. Mais que teuto-brasileiro (naturalizou-se em 1922 com o nome de Curt Nimuendaju), ele foi um teuto-ameríndio: pois Nimuendaju nunca escondeu seu desprezo e sua indignação face aos habitantes de origem ou identidade européia do Brasil, responsáveis pela miséria física e psicológica dos índios, incapazes, em geral, de perceber e admirar a dignidade intrínseca das formas culturais nativas; incorporando antifrasticamente o uso local, Nimuendaju os chamava de "cristãos", e mais tarde veio a classificá-los de "neobrasileiros", anacronismo nem por isso menos eloqüente.
Além deste compromisso existencial com os povos indígenas, Nimuendaju foi guiado por uma sensibilidade inata, capaz de apreender os temas essenciais, as questões fundantes de cada cultura que estudava: assim a escatologia religiosa dos Guarani, assim o refinamento sociológico dos Jê. O privilégio que sempre concedeu à palavra dos índios, em seus trabalhos, fê-lo sempre subordinar a especulação à descrição, a opinião ao registro do ouvido e testemunhado; foi isto também que o levou ao aprendizado e ao domínio de várias línguas indígenas, capacidades que hoje todo antropólogo sabe serem essenciais para quase todo tipo de descrição etnográfica séria; deste interesse central pela palavra indígena são testemunhos valiosos os inúmeros mitos que colheu nas mais diversas tribos que visitou, alguns dos quais são aqui publicados.
Praticamente toda a produção etnológica de Nimuendaju já foi publicada, embora muito dela o tenha sido em edições hoje esgotadas, de acesso difícil, ou em alemão. Nos últimos anos, entretanto, algumas traduções, reedições e coletâneas vêm contribuindo para maior divulgação desta obra (ver a bibliografia abaixo). A maior parte dos inéditos de Nimuendaju consiste em materiais lingüísticos (vocabulários), apontamentos, cunhos, fotos, e uma importante correspondência; salvo engano, apenas um ensaio descritivo sobre os Kayapó de Pau d’Arco (Irãamrayre) e, sobretudo, uma versão em português de sua monografia sobre os Timbira, que difere bastante da versão inglesa editada por Lowie (The Eastern Timbira) em 1946, são os trabalhos etnográficos importantes ainda inéditos. De toda forma, as monografias sobre os Xerente, os Timbira Orientais e os Tikuna ainda estão à espera de uma edição em português; mas seus trabalhos lingüísticos e sua correspondência também merecem uma edição crítica.
Eduardo Batalha Viveiros de Castro*

Nota
(1) Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grunlagen der religion der Apapocúva-Guarani. Zeitschrift für Ethnologie, 46, Berlin 1914: 284-403. Há uma edição em castelhano: Los Mitos de Creación y de destrucción del Mundo como Fundamentos de la Religion de los Apapocúva-Guarani . Tradução de J. Banadas, ed. de J. Riester. Lima: Centro Amazonico de Antropologia y Aplicacion Pratica (serie antropologica I), 1978. Tradução para o português em 1986 pela Editora Hucitec (tradução de Charlotte Emmerich e E. Viveiros de Castro).



BIBLIOGRAFIA BÁSICA DE NIMUENDAJU

The Serente. Los Angeles: The Southwest Museum (Publications of the Frederick Web Hodge Anniversary Publication Fund, 4), 1942.
The Eastern Timbira. Berkeley and Los Angeles: University of California Press (University of California Publications in American Archaeology and Ethnology, 41), 1946.
The Tukuna. Berkeley and Los Angeles: University of California Press (University of California Publications in American Archaeology and Ethnology, 45), 1952.
Os Índios Ticuna.  Boletim do Museu do Índio, Antropologia nº 7. Rio de Janeiro, 1977.
Los Mitos de Creación y de destrucción del Mundo como Fundamentos de la Religion de los Apapocúva-Guarani . Lima: Centro Amazonico de Antropologia y Aplicacion Pratica (serie antropologica I), 1978.
Fragmentos de Religião e Tradição dos Índios Sipaia. Religião e Sociedade nº 7, julho de 1981: pps. 3-47.
Textos Indigenistas. Prefácio e coordenação de Paulo Suess. São Paulo: Edições Loyola, coleção "Missa Aberta" nº 6, 1982.
Os Apinayé. Belém: Museu paraense Emílio Goeldi, 1983.
Mapa  Etno-Histórico de Curt Nimuendaju. IBGE/FNPM, 1981.


(*) Eduardo Batalha Viveiros de Castro é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ). É especialista em etnologia indígena brasileira, tendo realizado pesquisas no Alto Xingú (Yawalapíti), Acre (Kulina), Roraima (Yanomami) e entre os Araweté do Pará. Trabalha atualmente sobre a organização social e a cosmologia dos povos Tupi-Guarani.

Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional / 1986
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