Ianomâmi
povo que desperta ódio e simpatia
 

 
Um dos povos indígenas mais numerosos do Brasil, os ianomâmis, têm suas terras entre Roraima e Amazonas. As estatísticas de 1992 estimam a população em 9.975 índios. Se somados aos que vivem na Venezuela, fronteira com o Brasil, chegam a 15.193.
A complexidade cultural e a extensão e riqueza mineral do território - 9,6 milhões de hectares com ouro, pedras preciosas e cassiterita têm atraído, mais que a qualquer outro povo, simpatia e ódio contra os ianomâmi.
Em agosto de 1993, a contragosto, eles retiveram a atenção da imprensa nacional e internacional. Nesse mês, doze índios da aldeia Haximu, em Roraima, foram mortos numa reprimenda de garimpeiros que haviam invadido seu território.
A invasão começara cinco anos antes, quando a grande corrida do ouro levou para Roraima 60 mil garimpeiros: homens e mulheres desgarrados das formas clássicas de produção. Para eles, o estoque de recursos naturais em regiões inexploradas, como a terra ianomâmi, era a alternativa de sobrevivência. Desde então, essa situação não se modificou, ainda que a população garimpeira do Estado tenha se reduzido à metade. Parte migrou ilegalmente para a Venezuela.  Os números são de Crisnel Francisco Ramalho, diretor-secretário da Federação das Indústrias de Roraima e presidente do sindicato de garimpeiros.

Criança ianomâmi com varetas no rosto:
imita a onça, que teme tanto
Num primeiro momento, informações apressadas avaliaram os mortos em mais de 60.  Levantamentos posteriores mostraram que apenas 12 moradores de Haximu - acampados fora da aldeia e fugindo da perseguição garimpeira foram mortos. Críticos ironizaram esse número como se ele não caracterizasse um massacre. Se esse percentual de mortos fosse aplicado à população brasileira as vítimas seriam 195 mil.
Uma seleta platéia de críticos - particularmente do patrimônio ianomâmi - reuniu-se em meados de outubro, no Rio, no Terceiro Encontro Nacional de Estudos Estratégicos. Na mesa-redonda “Amazônia, ameaça de perdas territoriais, ocupação e desenvolvimento” encontraram-se nacionalistas de todos os matizes, entre civis e militares.
O ex-líder garimpeiro na Amazônia, José Altino Machado, argumentou sem contestação, segundo o “Jornal do Brasil” que “o garimpo é um dos responsáveis pelo desenvolvimento da região”. E acusou os índios de estarem “plantando cocaína em suas reservas para traficantes de fronteira”. O coronel de reserva Augusto Fregapani, coordenador da mesa, sugeriu uma aliança ao propor que “só teremos soberania na Amazônia com o apoio garimpeiro na área ianomâmi”.
Na presença do governador de Roraima, Neudo Campos, o tenente-coronel Marcus Vinicius Belfort Teixeira disparou contra as demarcações na fronteira “Elas hoje ocupam 11% do território, com apenas 0,2% da população da região. Essa, é uma ameaça à nossa soberania” criticou.
Padre Zacquini
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Davi, o pajé
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Crisnel Ramalho,
garimpeiro
No último dia 19 de novembro, em artigo na página 2 do Estado, o ex-ministro Jarbas Passarinho refutou essas idéias, argumentando que “a linguagem dos anos 50 parece estar de volta sob a forma intransigente do nacionalismo (...) resíduo de ódio tribal”. O discurso do “nacionalismo epidérmico”, segundo Passarinho, ministro de governos militares, “confunde-se com o xenofobismo e usa as palavras pelo efeito retórico, sem o menor compromisso com a verdade”.
Ao escrever para o Estado, Passarinho retomou o tema desenvolvido em artigo publicado em abril de 1993 na Revista do Clube Militar. Citando o artigo 2º da Constituição, ele refuta a versão de “perda de soberania” pela simples razão de que são considerados “bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Como proprietária dessas terras, argumenta Passarinho, “a União as cerca com o recurso da demarcação”.
Quanto à exploração dos recursos minerais, Passarinho - coronel reformado do Exército citaa o parágrafo 3º do artigo 231 da Constituição, onde se prevê que o aproveitamento dos recursos minerais das terras indígenas, que também pertencem à União e não aos índios, “pode ser efetivado com autorização do Congresso Nacional”. No caso dos ianomâmis, acrescenta, havia, já em 1993, “dois projetos de lei em tramitação na Câmara visando regulamentar a forma de utilizar as terras para exploração racional de recursos, especialmente os minerais”.
Em relação à extensão das terras, Passarinho recorre à antropologia para dizer que “não é o número de índios que define a ocupação de um território”. Avalia que, “isso depende de como a sociedade indígena se organiza socialmente e da maneira como se relaciona com a natureza para obter a sobrevivência”.
O missionário italiano Carlo Zacquini, há 30 anos no Brasil e a maior parte deste tempo vivendo com os ianomâmis, diz que esse povo, na realidade, são quatro. Cada um deles com cultura e língua específicas. Zacquini, da ordem da Consolata, fala fluentemente essas línguas, que considera acessos a “um universo bem pouco conhecido”. Num mundo que se globaliza rapidamente, ele considera que a manutenção dessa diversidade cultural é não só um patrimônio, mas um recurso estratégico que o Brasil não pode negligenciar.
Davi Kopenawa Ianomâmi também pensa assim. O líder indígena resume seu pensamento a uma idéia: “Nós, ianomâmis, queremos uma terra para o nosso povo, para vivermos em paz, sem brigas com o governo, militares e garimpeiros”. Os ianomâmis, diz, “não invadem a terra dos outros, respeita a terra dos brancos”.
A rica mitologia ianomâmi tem uma cosmologia particular. Ela divide o mundo em três faixas.  A de cima é muito velha e toda rachada. A do meio é onde vivem os ianomâmis, palavra cuja tradução, segundo Zacquini é “ser humano, pessoa, gente”. A de baixo não é tão velha.
Pajés, como o próprio Davi, fazem trabalhos espirituais e com eles sustentam as colunas que mantém a terra de cima. De lá, pelas fissuras, a água dos rios e lagos se infiltram e dão origem às chuvas na terra do meio.
Se os ianomâmis forem, extintos, pensam eles mesmos, as colunas não terão como ser mantidas.  Então, o céu cairá sobre os brancos sobreviventes. A 6 mil pés de altitude - 1.800 metros - a “terra do meio” dos ianoomâmis é um paraíso bíblico.
O monomotor que permite essa visão profana desloca-se sobre um vale apertado entre as serras do Mucajaí, ao Sul, e o Apiaú, ao Norte. A proa aponta para a aldeia Paapiú Velho, no meio da reserva.
Os campos gerais de Roraima - no passado cobertos pelo mar e hoje uma planície de vegetação rala, sulcada de lagoas - ficaram para trás. Os limites foram fixados por tratados. Mas isso não garante que sejam respeitados.
O cenário, com o final dos campos gerais, é único em todas as direções: a floresta cerrada, poderosa, cortada por rios esparsos de tonalidades variáveis. Mas nem todas as cores são naturais. Tons leitosos que mancham igarapés e rios denunciam a presença de garimpeiros na floresta, a “terra do meio”. Com motores sobre balsas eles sugam o leito das águas em mergulhos perigosos, contaminados pela febre do ouro.
Um mapa provisório da Funai mostra a presença do garimpo na reserva. As manchas escuras começam no Alto Urariquera, nas margens ocidental e oriental do Parima, no Alto Mucajaí, na junção deste rio com o Couto de Magalhães, no baixo Apiaú e no alto Catrimani, onde está a segunda aldeia a ser visitada pelos repórteres do Estado. Correndo para o Norte e depois Nordeste, está o Orinoco. Este é o rio que Cristóvão Colombo pediu permissão do papa para navegar, acreditando que tivesse atingido o Paraíso. Difícil aceitar a tese de José Altino, de que o garimpo clandestino beneficia a Amazônia
 
Índia ianomâmi da região do Catrimani, em Roraima, com arco e flecha, numa prática incomum entre as mulheres.
As pistas clandestinas são cicatrizes avermelhadas na floresta. O mapa traz alguns nomes: Jacarandá, Malária, Paulistinha, Chico Mineiro... Outras nem estão no mapa. É o caso de Sula Miranda, onde a rainha dos caminhoneiros fez um show, pago a peso de ouro.
O monomotor manobra em arco. Embaixo está a pequena pista de Paapiú. Quando o piloto pousa, uma mulher branca aparece no posto da aldeia. Está assustada, pensa que se trata de garimpeiros. Tranqüiliza quando descobre que os recém-chegados são jornalistas. A moça é Sônia Regina Siqueira, ex-professora da Escola de Primeiro Grau Sérgio Milliet, em Vila Carrão, periferia de São Paulo. Durante anos ela falou da floresta aos seus alunos, tirando as informações dos livros escolares. Agora está na floresta, entre seu habitantes imemoriais, como enfermeira.
As histórias em Paapiú são muito parecidas às do Catrimani, com a exceção de que, a aldeia Catrimani, agora, está livre de garimpeiros. João Davi Ianomâmi, o líder do Paapiú Velho, está um pouco atordoado pelo caxiri, aguardente de mandioca brava. Ele já viveu um período em Boa Vista. Fala um português fluente, o que lhe garante uma posição de liderança num grupo cercado por garimpeiros que não falam ianomâmi. Diz que orientou os ianomâmis a evitar o mineradores do ouro a todo custo e não aceitar presentes em troca de comida principalmente roupa usada. Roupas são um vetor de transmissão de doença que os índios aprendem evitar. No Paapiú Velho houve muitas mortes por malária. Entre os morto está uma das filhas de João Davi. Mas também a disenteria aumentou, com o revolvimento do leito dos rios onde os índios pescam e recolhem água para cozinhar e beber.
Na aldeia Catrimani, os repórteres chegam por terra. Para entrar na reserva é preciso atravessar o rio Repartição a nado e apanhar a balsa do lado oposto. O Repartição, como quase todos os rios amazônicos, tem piranha, arraia, sucuri, jacaré e candiru. O candiru é um peixe minúsculo, rosado, capaz de penetrar o ânus ou o canal da uretra, onde se fixa com suas nadadeiras.
Os índios da aldeia Catrimani estão chocados com três ataques de onças que sofreram este ano.  Dois índios foram devorados e um terceiro esta gravemente ferido em um hospital em Boa Vista.
Os ataques são conseqüência da passagem dos garimpeiros que acabaram com os porcos do mato e outras caças que alimentavam as onças. Então, elas começaram a atacar os índios. No Catrimani, também os repórteres do Estado sofreram um acidente, na Perimetral Norte.  Percorreram, à noite e desarmados, 14 quilômetros na mata onde as onças são freqüentes.
 
Roteiro da reportagem

 

O trabalho de campo para a realização deste Caderno Extra sobre os índios brasileiros foi feito pelos jornalistas Ulisses Capozoli (texto) e Itamar Miranda (fotos), ao longo de 16 mil km (veja mapa ao lado). Sob a coordenação do editor executivo Carlos de Oliveira, visitaram áreas dos Estados de Goiás, Mato Grosso, Pará, Amazonas e Roraima, durante 35 dias. Inestimável apoio logístico foi dado pelo instituto Socioambiental (ISA).

Acidente em noite de onça solta

Foi tudo muito rápido. Um motorista inexperiente pilotando uma picape precária e o mergulho para fora da estrada, como num filme em câmera lenta. O fotógrafo Itamar Miranda feriu a mão direita, mas isso, felizmente, foi tudo. Agora, é buscar socorro. Estamos isolados num trecho da Perimetral Norte, onde ela não passa de uma trilha de dois metros de largura. Os ianomâmis que nos acompanham se negam a ir.  Não por preguiça, mas por medo da onça mitológica. Acham que ela virá por baixo da terra, emergindo no meio da aldeia, devorando a todos. Avaliamos a distância e começamos a caminhada. Eu e o motorista da Funai, Venâncio, um mestiço macuxi. Em uma hora estará completamente escuro. Temos como armas um facão a uma lanterna. Na primeira hora percorremos uns oito quilômetros, numa marcha dificultada pelo pedregulho grosso que cobre o leito da estrada. Depois disso, escurece. A noite está clara, com lua crescente. Júpiter está ao lado da lua, em Sagitário, meu signo. Considero a possibilidade remota de ser este um bom augúrio. Da mata vêm o perfume agradável de cajueiros em flor. Um ruído brusco, ao meu lado, produz um arrepio sob meu couro cabeludo, como se fosse uma descarga elétrica. Viro a lanterna para a mata e caminho alguns metros de costas. Venâncio também está tenso. Onça? Um tempo depois subimos uma pequena elevação. Cheiro do fogo da maloca da cabeceira da pista do Catrimani. Estamos perto. Chegamos com a roupa molhada pelo esforço e tensão, ao final de duas horas de marcha. Caminhamos na maior floresta do planeta e em minha mente posso ouvir as narrativas do padre André, português, feitas à tarde, sobre os ataques de onça que aterrorizam os ianomâmis. O padre resgata Itamar e os índios. Jantar improvisado, mas saboroso. Ajudo irmã Maria, também portuguesa, a lavar a louça. Irmã Rosa diz que à noite não sai nem à porta do alojamento.  Revivo mentalmente a experiência da caminhada, do perfume e dos sons da noite. Nunca vou me esquecer. (UC)


Textos de Carlos de Oliveira e Ulisses Capozoli
Fotos de Itamar Miranda / AE
Caderno Extra do Jornal O ESTADO DE S. PAULO  de 8 de dezembro de 1996.
 
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