Sul: Doçaria Gaúcha
As receitas famosas e secretas, que deram à cidade de Pelotas um renome internacional, foram conseguidas por Dona Amélia Vallandro de um grupo de senhoras, ligadas a antigas famílias pelotenses. Daí surgiu o livro editado pela Editora Globo: Doces de Pelotas, em 1959.
Sempre houve muita resistência à divulgação dessas receitas, em defesa de uma tradição centenária que fez de Pelotas o centro de uma doçaria sem rival.

Como foi que isso começou?

O açúcar era pouco e ruim. Quem duvidar – salienta Athos Damasceno – que atente para o mate amargo, o chimarrão do gaúcho, hábito que se lhe inveterou mais por necessidade do que por gosto.
O colono, que a princípio era agricultor, logo virou campeiro. A carne e o couro logo tomaram conta da querência e a cana-de-açúcar que se plantava era pouca.
A rapadura e a canguara de Santo Antônio da Patrulha tiveram muito nome. Aquela, envolta em palha de milho e até exportada; esta, chamada Lágrimas de Santo Antônio e vendida em garrafões bojudos que deixaram nome.
O melado, em potes de barro, também foi famoso.
Mas o mesmo não se pode dizer do açúcar. Muito doce, é certo, mas escuro e áspero, mascavo brabo, de má catadura e até sabor suspeito.

Antônio José Ferreira, escrevendo sobre os conceituados Ferreira, de Bojuru, diz:
“... e, para prova do quanto essa família era venerada pelos demais moradores da localidade, vamos citar uma narração histórica que vem da antiguidade. Na época em eram escassos o açúcar e o café, nesse e em outros lugares, quem possuía desses artigos os depositava em boiões, que eram içados por uma corda apropriada na cumeeira da casa, e dali só eram arriados para obsequiar-se aos membros dessa família – Ferreira-, ao arrematante da Fazenda Real de Bojuru, ao padre da Freguesia e aos hóspedes que trouxessem nos arreios seu cochonilho, que neste bom tempo custava, cada um deles, uma onça de ouro”.

Diante de tal indigência de matéria-prima – diz ainda Athos -, não há outra explicação para a volumosa e variada confeitaria rio-grandense senão a proverbial lambisqueirice de nossos avós: o português, que com tanta presteza aprendera dos romanos a encher o pandulho de valentes e sucessivos nacos de assados e cozidos e que, com ânimo igual, tomara aos mouros mais o vício do que o hábito de melar-se das mais enjoativas guloseimas, tinha necessariamente de transmitir-nos a perfumada e colorida tradição da mesa abundante e da sobremesa copiosa.

De fato, o português para doces está sozinho. Ramalho Ortigão estaca com olhos de gula à frente das confeitarias lisboetas, onde se exibe a coleção completa dos doces de ovos: “as queijadas, os morgados, os fartos e as lampreias... e boizinhos de pão-de-ló com chavelhos de açúcar e entranhas de creme...”
É preciso não esquecer que o colonizador é açoriano, grande apreciador e consumidor de doces. É por isso que, mesmo sem açúcar, obrigado a importá-lo do Rio, da Bahia, de Pernambuco, de Santos, de Santa Catarina, do Estado do Rio, de Minas, até do Espírito Santo, o gaúcho fazia doces.
(No ano de 1816, segundo Saint-Hilaire, a província importou mais de 1000 contos de réis de açúcar...)

A boa fama doceira começou, provavelmente, com o pé-de-moleque, o bolinho de coalhada de Viamão e Barra do Ribeiro, com os sonhos de Rio Pardo, com o pudim da roça (de arroz), e logo foi firmada com os puxa-puxas de São Leopoldo, as balas de guaco e de mocotó (indicadas para o peito) e as de mel-de-pau (para tosse).
Em nenhuma casa podia faltar doce de abóbora e de bata-doce, pelo menos esses.
Os açorianos não entendiam festa sem muito doce; qualquer festa, e assim foi o começo da vida gaúcha: açúcar e doce eram sinônimo de festa; e vice-versa.

As chácaras, sítios e quintais gaúchos eram de arregalar os olhos dos visitantes. Dreys registrou em sua Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul: “O lado oposto do rio está bordado de ricas chácaras, de aparatosos jardins, abundantes de flores e frutos, cujos aromas misturados na atmosfera suavizam o olfato e despertam o apetite; as uvas (as mais deliciosas que se pode encontrar no continente americano, e que já tivemos ocasião de comparar, por suas formas e seu sabor, com as tão celebradas uvas de Fontainebleau), os pêssegos, os figos, as pêras, os marmelos, juntos com a laranja, a lima, a banana, crescem na mesma latada, recebem enlaçados os benefícios da mesma terra, do mesmo céu... também é preciso declarar que a índole dos habitantes harmoniza-se com a profusão da natureza: todos aqueles produtos de uma terra pródiga, solicitados por cuidados contínuos e esclarecidos, parecem propriedade comum. Qualquer passante que queira satisfazer a sede ou a vontade de saborear tão sedutores presentes da pomona local pode entrar na primeira chácara que lhe aprouver e pedir o que lhe agradar – achará logo, em todas as partes, obsequiosa prontidão em o servirem e os refrescos apetecidos lhe serão apresentados com um desinteresse digno dos tempos patriarcais”.

Não admira que compotas de toda ordem passarem a ser fabricadas no Rio Grande, assim como as passas e os cristalizados, além das marmeladas (nome genérico que englobava todas as massas de frutas, fossem de marmelo mesmo ou de goiaba, pêra, laranja, figo ou maçã).
A marmelada Imperial (vendida na Rua Nova do Poço) era despachada em caixotes e formas, inclusive para o estrangeiro; e os marmeleiros faziam cerca viva em todo o Estado. A fruta, intragável, dava o doce mais popular, e o marmeleiro dava ainda a vara, impopularíssima mas de largo uso na educação das crianças.

Quem inventou o picolé e o sorvete, no Rio Grande, foi o Governador Dom Diogo de Sousa, em 1812: algumas vasilhas contendo água com sumo de frutas e açúcar ficaram expostas às fortes geadas do inverno. Á 1 hora da madrugada, recolhidos os recipientes, Dom Diogo mandou moer parte do sólido transparente e cortar em lâminas outra parte. Seus convidados apreciaram muitíssimo tanto uma novidade quanto a outra.
Em 1855, o sorvete era conhecido em Porto Alegre com o nome de papa-fina; e gozava de uma popularidade sem limite.
(O Hotel do Brasil anunciava gelados à disposição, hasteando uma bandeira vermelha da sacada do prédio.)

A receita do branc-manger (!) do Hotel Central prova que os sorvetes eram levados muito a sério naquele tempo:
A um quartilho de leite, junte-se uma onça de cola ou gelatina, mais uma quarta de açúcar, duas oitavas de canela em pó, um pouco de noz-moscada ralada, metade da casca de um limão e uma folha de louro.
Ponha-se tudo numa caçarola a fogo lento, mexendo sempre até que a cola fique dissolvida.
Passa-se logo por um guardanapo, coloca-se a seguir na forma e mete-se afinal no gelo, sem esquecer de juntar também algum aroma ou leite de amêndoas amargas.

Indígenas e negros não tiveram contribuição a dar à doçaria gaúcha. Ela é eminentemente portuguesa. Portuguesa e alemã.
Os camponeses, que na Pomerânia ou no Palatinato se alimentavam de batatinhas, hortaliças, massas de farinha de trigo, carnes salgadas e defumadas, pão de centeio, foram obrigados a substituir tudo por feijão preto, mandioca, arroz, cará, taioba, pão de milho e carne-seca. E raramente aceitaram, espontaneamente, os novos padrões alimentares, logo voltando ao padrão antigo. Com isso, introduziram na região os seus hábitos alimentares, inclusive os doces não tão doces.
A tradicional cuca é, evidentemente, de origem alemã, como as tortas de amêndoas, as fritas de cervejas e as fandequeques...
Essas fandequeques se fazem com dois ovos bem batidos e certa porção de leite, mais a farinha de trigo necessária para engrossar a massa, que, frita em manteiga, em pequenas porções bem delgadas, vai para o prato com canela e açúcar.
(Aqui entre nós: panquecas.)

Como os cuês, também muito germânicos e que já se faziam assim em 1895, segundo Dona Ana Correia:
Desmancha-se meia libra de farinha de trigo num pouco de água morna com sal;
junta-se-lhe meia xícara de fermento de cerveja, amassa-se bem e deixa-se descansar a massa por quinze minutos;
juntam-se-lhe depois dois ovos, gemas e claras, uma mão cheia de passas de Corinto, algum açúcar, pouca manteiga e mexe-se bem até ficar bem ligado;
deixa-se descansar de novo a massa e fazem-se pastilhas que se frigem em manteiga, e polvilha-se com açúcar e canela.

Aliás, é de se notar que os alemães sempre usaram mais açúcar por fora do que por dentro.
Quando Isidoro Volkmer admitiu o doce de coco como recheio de suas famosas canoinhas, tirou o açúcar das tortas, que passaram a ter a massa ligeiramente salgada. E os irmãos Neugebauer (Francisco, Ernesto e Max) adotaram a mesma técnica nas suas famosíssimas mentiras e esquecidos, biscoitos da nossa infância, em que o sal se misturava ao açúcar para dar um paladar especial e inesquecível.
Como especiais e inesquecíveis eram seus chocolates.

Engraçado é que, em Pelotas, como no resto do Estado e do Brasil, davam mostra de bom gosto as pessoas que, em suas festas, podiam exibir riquíssimas mesas de doces, balas e biscoitos, com bolos sensacionalmente enfeitados, acompanhados da informação:
“Não são doces de confeitaria; são doces de casa de família”.
Engraçado, porque as doceiras envaideciam-se com o título – expressão de talento invejável -, mas aborreciam-se com a humilhação de vender para fora.
Diz Athos Damasceno: “Jungidas ainda a muitos preconceitos de ordem social, essas senhoras das nossas relações em geral ocultavam seus nomes, aborrecendo a identificação que as apequenhava aos olhos de todos”.
Com isso, mesmo fazendo ofício de suas habilidades, muita senhora gaúcha somente a rogo atendia aos reclames do mercado, fazendo questão de informar que cobrava apenas o custo. Como castigo, deixaram de entrar para a história, ligando seus nomes às receitas que hoje reverenciamos respeitosamente.

Lamentável, também, é observar que desapareceram os guardanapos e franjadas de papel que, tradicionalmente, enfeitavam as bandejas de doces caseiros.
O ofício das recortadoras (herdado dos conventos portugueses) ganhou no Brasil uma ingenuidade e uma pureza que transformaram artesãos em verdadeiros artistas populares, talvez menos delicados e menos sutis, mas certamente mais espontâneos, bem-humorados, alegres e inventivos.
Menos filigranada e bordada, mais gaúcha, é pena que as senhoras já não recortem na folha de papel de seda “a teia complicada e o franzido miúdo” com que guarneciam suas bandejas, caixas, e s confeitarias de doces e caramelos.
Disse senhoras e já me apresso a emendar que alguns dos grandes recortadores eram homens, embora disso se devesse fazer um segredo mortal, para que não ficasse comprometida, irremediavelmente, a honra da família.



A Cozinha Brasileira - São Paulo: Circulo do Livro S.A. (Edição integral Revista Cláudia - Editora Abril S.A.), sem data.
 
 
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